“O código Da Vinci” em questão (roubado daqui)
Por José Augusto Ribeiro
Como foi o debate da crítica Walnice Nogueira Galvão e do teólogo Luiz Felipe Pondé sobre o best-seller
Como romance de fundo histórico, "O código Da Vinci" peca pelas imprecisões factuais. Como thriller policial, tem desfecho "anticlimático". Como enigma esotérico ou religioso, opta por soluções "simplistas" e uma teologia "bem barata". Mas, como best-seller, o livro não erra: repete a fórmula do sucesso mercadológico, sem arriscar-se em experimentações formais. Por que então, com tantas deficiências, o título virou a coqueluche que é?
Algumas respostas possíveis a essa pergunta foram aventadas em um debate a respeito do livro promovido por Trópico e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo dentro da série de encontros “Trópico na Pinacoteca”. Diante do auditório lotado da Pinacoteca, a crítica de literatura e cultura Walnice Nogueira Galvão e o teólogo Luiz Felipe Pondé analisaram a representação da Igreja Católica no livro do norte-americano Dan Brown que se tornou um fenômeno de vendas em todo o mundo.
Primeiro, Walnice destrinchou o formato de best-seller comum aos livros de Brown, Paulo Coelho e J. K. Rowling, a autora da série "Harry Potter". Depois, Pondé se deteve ao exame das "questões teológicas" em que se enreda "O código Da Vinci". O resultado foi elucidativo e sem concessões.
"A meu ver, o extraordinário sucesso mundial de ‘O código Da Vinci’ é resultado de uma estratégia de marketing. Nada encontrei neste livro, nem nos dois outros que li do mesmo autor (‘Anjos e demônios’ e ‘Deception point’), algo que justificasse tal sucesso. Sei que existem, inclusive, quatro ou cinco livros, de outros autores, discutindo ‘O código Da Vinci’", disparou Walnice Galvão, na abertura do encontro.
Para corrigir, em vez de "quatro ou cinco", já são pelo menos 12 os títulos editados no Brasil que se dedicam a "quebrar", a "decodificar", a "revelar", a "desmascarar", a "decifrar" -e até mesmo a "cozinhar com"- "O código da Vinci". O sucesso internacional a que se referia a crítica literária pode ser medido pelos mais de 20 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Só no Brasil, onde a tiragem de um livro recente costuma ser de 3.000 cópias, em média, a obra vendeu 750 mil, em um ano. O resultado animou a editora responsável pela edição brasileira, que agora espera duplicar estes números até o final de 2005.
Os produtos culturais que têm por trás um poderoso aparato de publicidade são vários. Contudo, nem todos dão certo como o "O código Da Vinci". Menor ainda é o número de lançamentos editoriais com uma liquidez tão estrondosa. Então, afora a "estratégia de marketing", o que caracteriza um best-seller? Walnice propõe uma definição:
"Quando falo de best-seller, eu falo não de um livro que vendeu muito, mas de um livro que é escrito de acordo com uma receita prévia, destinada a vender muito e rapidamente. É um livro cujo valor como mercadoria precede o valor artístico ou estético. É um livro produzido não de maneira livre e desinteressada, se nós considerarmos os dois critérios para identificar a obra de arte, segundo (o filósofo Immanuel) Kant, mas de olho nas exigências do mercado".
Para tanto, existe uma fórmula, segundo Walnice, reproduzida a seguir. Primeiro, a leitura do livro deve ser fácil e digestiva. Segundo, o autor deve se pautar pelo "mínimo denominador comum", até chegar a alguma coisa que seja acessível à maioria das pessoas. Terceiro, a escrita deve fingir que a forma não existe; "deve-se diluir a camada lingüística, para que ela se torne transparente e desapareça como fonte de beleza estética". Quarto, é obrigatório aferrar-se a clichês e evitar o experimentalismo. Quinto, recomenda-se eleger temas que mexam com emoções primárias e irracionais, como sexo, violência e, "como vemos ultimamente", esoterismo, religião e ocultismo.
A sexta regra é, segundo a crítica, aquela em que menos se presta atenção: todo best-seller traz sempre idéias progressistas. "Veja que é muito raro encontrar um best-seller reacionário, e por quê? Porque cai bem com os leitores, já que as camadas sociais que lêem livros, em geral, têm idéias progressistas. Qual seria a idéia progressista central de ‘O código Da Vinci’? É a entronização da mulher e do feminino, que é algo da última moda e que está na linha de frente das idéias progressistas de nosso tempo. No livro, isso é escondido atrás de uma série de ficções a respeito de Maria Madalena."
Personagem da Bíblia normalmente interpretada como prostituta que encontrou sua redenção em Cristo, Maria Madalena se insere na trama de "O código Da Vinci" como suposta esposa de Jesus Cristo e a mãe de um filho do filho de Deus. Passagens deste tipo levaram o Vaticano a recomendar a seus fiéis que não comprassem nem lessem nada da lavra de Dan Brown. O que, claro, só fez aumentar os índices de venda dos livros do autor americano.
A sétima regra para um best-seller é "ter um saber, uma técnica, uma especialidade". A obra deve oferecer ao leitor essa especialidade porque a ideologia burguesa, para a qual "tempo é dinheiro", exige que haja um efeito de aprendizagem, “que o leitor se iluda pensando que não está perdendo seu tempo ao consagrar-se à leitura", nas palavras de Walnice.
"Uma das maneiras de reconhecer o best-seller é até simples: seu autor publica um livro por ano ou a cada dois anos, no máximo. Nesse sentido, é bom lembrar os estudos do (sociólogo francês) Pierre Bourdieu, quando ele diz que a aceleração das coisas no nosso tempo é nefasta para as artes e para a cultura. Porque as artes e a cultura têm um tempo de maturação que leva anos, décadas e, às vezes, séculos. A boa literatura, portanto, é avessa à linha de montagem, que é o que ocorre com os autores de um livro por ano ou a cada dois anos", completou.
Em seguida, Galvão deu início a um levantamento do que têm em comum e do que têm de diferente "O código Da Vinci", os livros de Paulo Coelho e os "Harry Potter". A análise começou pela escocesa J. K. Rowling. "No caso do ‘Harry Potter’, a autora acerta a mão. Ela executa um livro seguindo a receita do best-seller com grande felicidade. Aliás, este é um segredo que os britânicos têm para fazer livros para crianças", comentou a crítica literária, lembrando exemplos do passado, como o inglês Lewis Carrol ("Alice no país das maravilhas") e o escocês Robert Stevenson ("A ilha do tesouro").
"Uma das razões desse grande acerto (dos britânicos com relação à literatura infanto-juvenil) pode ser buscada nas mitologias européias, dos povos bárbaros. Os nórdicos demoraram mais tempo a se romanizar, a se cristianizar, e conservaram um acervo enorme de lendas, mitos e narrativas em que pululam os seres sobrenaturais, como fadas, gigantes, trasgos, gnomos, duendes. Quando o Romantismo, na virada do século 18 para o 19, despertou um interesse muito grande pelas tradições populares, nós tivemos, em toda a parte da Europa, alguns escritores recolhendo essas narrativas orais e transformando-as em livro", explicou Walnice, citando como exemplo a obra clássica dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.
"Harry Potter" seria, então, a revitalização do conto de fadas, ou sua versão contemporânea. "É como se a autora tivesse posto no liquidificador todas essas histórias anteriores, selecionado os ingredientes básicos e montado de novo o paradigma do conto de fadas." Basta comparar: o protagonista da série -que já foi adaptada para o cinema- é um órfão atormentado, mal-tratado por pais adotivos, convivendo com um primo que o persegue. Em meio a tantas dificuldades, ele descobre que é um bruxo. O personagem sabe que pertence a uma grande linhagem de magos e, assim, vai vencendo todas as tristezas, como na Branca de Neve.
O escritor seguinte a ser alvo da reflexão foi Paulo Coelho, o primeiro autor brasileiro a se situar entre os 10 mais vendidos do planeta. Para a crítica de literatura, o autor de "O alquimista" é um precursor do gênero "auto-ajuda travestido de esotérico". "Ele (Coelho) estava lá no seu canto, escrevendo livros em que oferecia esoterismo, ocultismo, auto-ajuda, quando o mundo inteiro deu uma guinada nessa direção. Vamos dizer que o mundo é que foi ao encontro de Paulo Coelho. Como ele escreve dentro do mínimo denominador comum, isso o globaliza imediatamente. Ele pode ser lido em qualquer lugar." Até chefes de Estado, como os presidentes de França e Estados Unidos, declararam que leram livros do escritor brasileiro, que também é sucesso na China, no Iraque e no Leste europeu.
E o que "O código Da Vinci" tem a ver com isso? Tudo, segundo Walnice. "Harry Potter, Paulo Coelho e ‘O código Da Vinci’, além de serem best-sellers, oferecem esoterismo, religiosidade, o oculto e a magia, que são, a meu ver, compensatórios do excesso de materialismo de nosso tempo, do fundamentalismo do mercado, do primado da mercadoria e da idolatria do consumo e seu templo, que é o shopping center", resumiu a professora de literatura comparada da Universidade de São Paulo e autora de “O império do Belo Monte”, sobre a Guerra de Canudos.
"Nós temos (no livro de Dan Brown) um enigma esotérico que exige decifração, por isso o herói é um simbologista da Universidade Harvard, acolitado por uma criptógrafa. Segundo, nós temos segredos escandalosos da vida privada de Jesus Cristo e a história de seu casamento com Maria Madalena. Terceiro, é um thriller de detetive, de suspense, e eu penso que Dan Brown é bom de enigma, mas ruim de solução. Ele põe uma série de soluções, uma atrás da outra, e cada uma delas fica mais sem graça que a anterior, até que a última é realmente anti-climática."
Para não ficar só em depreciações, Dan Brown garante, pelo menos, boas doses de humor, segundo Walnice. "O que é mais divertido no enigma do ‘Código’ é que o autor falsifica a fonte sem a menor cerimônia. Por exemplo, ele diz que o caso de Jesus Cristo e Maria Madalena é confirmado pelos manuscritos do Mar Morto. Acontece que os manuscritos do Mar Morto, que são anteriores a Jesus Cristo e ao cristianismo, nunca os mencionaram. O que os manuscritos do Mar Morto trazem são versões do Velho Testamento e documentos sobre a seita dos essênios, que foram aqueles que escreveram os manuscritos. Mas o leitor é facilmente enganado. Esse é um ponto de escândalo, na minha opinião."
Outro "ponto de escândalo", para a crítica de literatura, é o tratamento dado no livro à lenda do Santo Graal. Ao contrário do que está em "O Código da Vinci", o Santo Graal nunca teve nada a ver com a Santa Ceia de Jesus Cristo nem com a famosa tela de Leonardo Da Vinci. Walnice Galvão lembrou que o Santo Graal é uma tradição literária que surge por volta do século 11 ou 12, na Europa, sem vínculo seja com a cultura romana, com a grega ou com a judaica.
"A lenda do Santo Graal é uma daquelas que deram origem aos contos de fadas de que falei há pouco. É uma lenda dos povos bárbaros europeus, no caso, os celtas. É uma das mais importantes, se não a mais importante de todas, e faz parte da saga do rei Artur e da Távola Redonda. Segundo a tradição literária, o Santo Graal é o nome que se dá ao cálice com que José de Arimatéia recolheu o sangue de Jesus Cristo vertido na cruz, como está escrito nos Evangelhos. Não tem nada que ver com a Santa Ceia que Jesus Cristo ofereceu a seus discípulos, às vésperas de ser preso, martirizado e crucificado. Dan Brown diz que é o mesmo cálice, que o Santo Graal é o cálice que foi usado na ceia. Não foi, isso está errado tanto segundo a Bíblia quanto segundo a tradição literária da legenda do Santo Graal", disse Walnice, no debate realizado em 30 de abril.
(SEGUE)