Hoje, encontro isso salvo em um .txt de 2008 nos calabouços do meu HD
"Aos filmes de aventura americanos, esses filmes cheios de dinamismo espetacular, com mise en scËne ‡ Pinkerton, o kinok diz obrigado pela velocidade das imagens, pelos primeiros planos. Isso È bom, mas desordenado e de modo algum fundamentado sobre o estudo preciso do movimento. Um degrau acima, do drama psicolÛgico, falta-lhe, apesar de tudo, fundamento. … banal. … a cÛpia da cÛpia." - Dziga Vertov
Às três e trinta e três da manhã, as bruxas estão soltas, e Whitman dialoga com Pessoa.
A morning-glory at my window satisfies me more than the metaphysics of books.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem?
I believe in the flesh and the appetites. Seeing hearing and feeling are miracles, and each part and tag of me is a miracle
O único sentido íntimo das cousas É elas não terem sentido íntimo nenhum. Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me, Aqui estou!
I play not a march for victors only …. I play great marches for conquered and slain persons. Have you heard that it was good to gain the day? I also say it is good to fall …. battles are lost in the same spirit in which they are won
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo.
Tenho nó no peito como angina Um vazio bobo pela cabeça E os músculos incapazes de realizar ação alguma Angústia anual à sombra do aniversário!
Melhor seria ter uma fome descomunal, ou luxúria insaciável Assim saberia onde encontrar alívio Se o diabo me aparecesse em carne e osso Oferecendo qualquer coisa em troca de minh'alma Certamente, encontraria aí algum sossego. Mas não! Somente me resta a angústia, angústia na véspera dos meus anos.
De onde surge a melancolia? É dor pelo tempo que escorre? Pelos ponteiros, os segundos correm depressa Onipresente relógio! Carcereiro à porta do cotidiano! O melhor seria esquecer-me de dar corda. Fundar uma outra nação e abolir o tempo.
Para! Que adianta beber agora? Não há cachaça no mundo para livrar as amarras De toda sorte, é o melhor anestésico que tenho Sutil, dá às ideias algum espaço E me permito até sorrir.
Sossego. Busco na memória a certeza de que isso passa Nada é senão um resfriado da mente Um tipo de indisposição transitória, curto circuito de ideias Sei bem.. Em um ou dois dias esqueço-me e sigo sem pressa por mais um ano, aguardando o próximo lampejo de angústia ou lucidez.
Trabalhar nas minas, ser explorado explorando a terra, é uma loucura que só podemos imaginar. O trabalhador alienado, recebendo salário mínimo é pedra fundamental da pirâmide do capital. Terrível é a distribuição de riquezas, aqueles os quais mais sofrem, gastando suas vidas em um buraco escuro e úmido como animais, jamais verão senão mínima parte da imensa quantidade de dinheiro produzida. Sorte terão se, depois de vinte ou trinta anos, com o saúde selada por uma pneumoconiose, puderem se aposentar e seguir recebendo o salário de miséria - um muito obrigado pelos serviços prestados.
As minas são um dos melhores exemplos da exploração do homem pelo homem, sempre lembramos de Potosí, a cidade Boliviana foi a mais rica do mundo no século XVII, depois que roubaram toda a prata de suas estranhas para a metrópole espanhola, foi abandonada e hoje não passa de uma imensa e pobre favela, assombrada pelos fantasmas do passado. As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, é um livro necessário, demonstrando didaticamente o meio milênio de submissão do nosso continente.
A tristeza de hoje é acompanhar, como em um reality show mórbido encomendado pelo mídia, as notícias do experimento natural com os trinta e três mineiros de San José. Por algum tempo, ficará marcada em nossa retina as imagens das condições de sobrevivência no fundo da mina, e depois? Sem dúvida, é inimaginavelmente terrível ficar preso por meses naquelas condições; entretanto, não podemos esquecer que há séculos aprisionamos homens na mesma situação, o turno de trabalho é o grilhão e os detém por toda sua vida "útil" - laborativa. Pelo menos uma vez na história, preocupa-se com o estado mental dos trabalhadores, e eles são estimulados com atividade lúdicas para espantar a depressão. Passado algum tempo, tudo voltará a ser como era, esperamos o próximo desastre para nos horrorizar com imagens da realidade.
Mining for Gold - Cowboy Junkies
We are miners, hard rock miners To the shaft house we must go Pour your bottles on our shoulders We are marching to the slow
On the line boys, on the line boys Drill your holes and stand in line 'til the shift boss comes to tell you You must drill her out on top
Can't you feel the rock dust in your lungs? It will cut down a miner when he is still young Two years and the silicosis takes hold And I feel like I'm dying from mining for gold
Caddie é o som ao qual responde a fúria do bebê de trinta e três anos. Em meio aos berros inferidos, a bola de golfa viaja sem se preocupar com os últimos suspiros daqueles que já foram os donos do green.
Oitenta anos depois, descubro a perfeição da narrativa de Faulkner. A mídia atordoa, excita, confunde o pobre leitor, o qual, perdido na singela decadência da grande família sulista, mal percebe até onde chegará nos labirintos da mente de todos os homens.
Enquanto Quentin foge, Quentin se mata, Candace não existe, Jason morre, Jason é roubado, Maury é Benjamim e Dilsey, Dilsey guarda, e aguarda.
I am the ugly lover You'll find us rolling on the dirty floor Break my body, hold my bones, hold my bones
- Pixies
Hoje, faz uma semana que Rita morreu. Saiu pra beber com os amigos de infância, o idiota do motorista bebeu demais, jogou o carro em um poste. Por azar do destino, ou por reflexo vital do bêbado, o poste bateu em cheio na parte traseira direita, bem na mosca pra foder de vez a minha vida. Agora eu tô aqui acabada, ouvindo Pixies (sempre me pareceu uma banda extremamente lésbica) e lembrando do cheiro da pele dela, do contato suave dos cachos dela nos meus peitos nus, das noites viradas sem muito sexo, mas com longos e divertidíssimos papos de filosofia de boteco.
A gente até transava, tivemos algumas fases alucinantes, quando não tínhamos obrigações e podíamos nos dedicar inteiramente aos nossos corpos. Na verdade, o grosso que sobrou do relacionamento, foi outra coisa mesmo. Foi algo chamado (forçando na pieguisse) de companheirismo ou amizade.
Na real, nem sei se sou lésbica, dei pra uns carinhas por aí e nunca deixou de ser bom, mas a Rita eu amava, como nunca vou amar outro homem ou mulher. A gente já estava juntas há quase um ano, os amigos já vinham se acostumando. Até as piadinhas a gente levava numa boa... Nós mesmas fazíamos a maior parte das piadinhas.
Ontem, saí com nossa turma. Todo mundo insistindo bastante, aquela coisa de "não pode ficar em casa sem fazer nada" e "tem que tentar se divertir". Tanto eles quanto eu sabem que é pura balela, me divertir está além de qualquer perspectiva. Mas calma, eu sei que isso passa. Desligo a música, quero tentar pensar melhor. Então, estava falando de quando saí ontem a noite... Fomos num lugar novo, música eletrônica, decoração futurista, essa coisa toda. O único lugar onde consegui ficar em paz foi o lounge, mesmo assim uns caras desavisados tentaram chegar, mas meu olhar de desespero parece ter funcionado bem pra afastar todos. Uma hora tentei dançar, mas é ridículo dançar careta no meio de uma roda de gente viajando em ecstasy, enchi o saco, peguei um táxi e vim pra casa.
Tenho uma teoria de que preciso esgotar Rita, botar tudo o que há de Rita em mim para fora, queimar todas essas fotografias guardadas na memória. Só assim serei livre novamente, essa é a única alternativa encontrada para superar isso tudo. Essa carta então não passa de mais uma tentativa nesse sentido, desejo com força esquecer pra sempre de tudo escrito aqui, e é exatamente para isso que escrevo.
Ponho pra tocar "Bull in the Header", a música favorita dela, e vou, de olhos fechados, relembrado cada pequena porção do seu corpo, cada reentrância da sua pele. Mentalmente aperto o "Delete", esse corpo não existe mais, não há razão para mantê-lo aqui, essa lembrança pesada, essa dor passada. Tudo isso já passou, repito para mim mesma, agora é seguir andando. Não tenho certeza se esse bizarro ritual vai dar resultado, mas sempre acreditei em mágica, e acho que pra ela funcionar, basta isso: acreditar.
Agora as caixas de som tocam "Don't you know I get emulsified", Rita sempre me dizia que esse era o hino lésbico do Yo La Tengo, acho a música divertida, bonitinha, animada, etc. Meu próximo passo é apagar as Mp3 e jogar fora os CDs que tem relação com Rita. Estou pensando em jogar tudo fora de uma vez, esse vai ser o jeito... Ficar em silêncio por um tempo, quem sabe isso também não vai me ajudar, o silêncio tem semelhanças com a boa música.
Será uma boa idéia escrever um livro sobre Rita? Não algo biográfico como isso que escrevo agora com os olhos cheios de lágrimas, mas uma ficção, posso transformá-la em uma heroína e assim exorcizar os últimos traços de sua personalidade ainda presentes em mim. Lembro, na época da publicação do meu primeiro livro, quando me perguntaram se eu me sentia feliz com o "feito" (dada a imensa dificuldade no mercado editorial do país, etc), respondi algo do tipo "como se diz, todo mundo na vida tem que ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, me consola o fato do meu livro ser mais bonito que a maioria dos filhos da maioria das pessoas". Lembro claramente a idéia repugnante da maternidade, podia jurar de pé juntos que nunca iria ter um filho; no entanto, aqui estou eu agora desejando ter um filho da Rita.
Deleto essa imagem, rápido, coisa horrível, um filho de duas mães, concepção impossível, agressão a genialidade da natureza. Quem sabe no futuro isso seja comum, uma pena que mães lésbicas só possam ter filhos fêmeas... Não, não me parece plausível a invenção de tal anomalia, é como assinar o atestado de óbito do sexo masculino, esse gênero tão pouco útil.
Mais uma vez de olhos fechados, lembro dos olhos dela, dos sulcos, das raras rugas, das olheiras que nunca desapareciam. Apago. Faço força pra me recordar dos cabelos, já estão quase esquecidos, mas é perigoso deixar algo assim, por sí só, então trago a memória de volta e com força acabo com ela de uma vez por todas. E assim sigo meu esforço ritualístico, passando por suas coxas, suas unhas, sua língua, seus dentes e obturações. Deleto com veemência e sem mágoa. Continuo pelas costas, as tetas, os mamilos, a boceta, o pé. O pé foi a parte mais difícil, depois dele as coisas fluíram melhor.
(...)
Já me sinto mais distante de Rita, parece ter partido em uma longa viagem de navio, restaram poucas coisas. Até minha respiração está mais leve e meus olhos menos marejados. Tudo parece aceitável, é só não pensar fundo o suficiente.
Faço um esforço além, apago da mente o nome dela, apago seu gênero, transformo o resto (inclusive a absurda idéia do livro ficcional) em uma coisinha de nada, como a memória do passarinho que tive quando tinha seis anos e fugiu. Agora estou pronta, ponho pra tocar "Fake Plastic Trees", adoro esse som, lembra meu irmão. A garrafa de vinho secou, me resta na boca um gosto estranho, meio amargo, quase não dá pra associar com o que bebi.
Amanhã vou trabalhar de novo, a Dani vai estar lá, linda como sempre, tão atenciosa, sua gentileza é quase uma carícia. Quem sabe?
Estou totalmente lúcido. Não bebi, não fumei, não cheirei. É um milagre que esteja escrevendo sob tanta lucidez, mesmo assim sigo escrevendo à noite. Kafka só conseguia escrever à noite também, parece que a luz o incomodava e dispersava suas idéias, ou tirava o foco da eterna escuridão que carregava consigo. Talvez devido ao pensamento cristalino, não consigo escrever nada. Nada mesmo. Aliás, até queria escrever (e sei exatamente o que), mas o tema é tão recorrente e chato que nem eu agüento mais, é hora de mudar, vou buscar algo novo...
Pessoa já dizia que todas as cartas de amor são ridículas. Bom, essa talvez seja menos ridícula, uma vez que não falo de amor. Sabes bem, beibe, que te quero muito bem. Tenho um carinho infinito por ti. Podíamos ficar um tempão juntos, falando das mais variadas coisas, podíamos até ter um filho sem querer, ir morar junto e viver uma vida a dois, com nossos amantes e tudo mais, é claro, como tanta gente leva por aí. Mas claro, o que quero dizer aqui, é que apesar da gente se gostar muito e tudo mais, nunca houve amor de verdade. No máximo aquela paixão do momento inicial, aquela explosão, tal qual uma super nova, de muito brilho, mas desde sempre fadada a desaparecer por completo. Ouço o Belchior cantar aqui "o passado é uma roupa que não nos serve mais"; entretanto, não é disso que estou falando. Nossa roupa, por assim dizer, nunca nos serviu, ou ficava apertada demais, ou então folgada a ponto do ridículo. Ainda assim eram roupas, não? e as usamos pelo tempo que foi conveniente... Agora não é a hora de jogar na cara do outro que a roupa ficava apertada demais, a gente sempre viu isso, era evidente, então vamos nos poupar desse embate. Para abraçar meu irmão e beijar minha menina na rua, é que se fez meu braço, meu lábio e a minha voz. Percebe que foi praticamente por necessidade? ninguém mais adequado naquele momento, foi eu mesmo, foi tu mesma. Por quanto tempo será que a gente podia continuar fingindo que tava tudo bem, que éramos alma-gêmeas e que aquela merdinha era o AMOR que todo mundo tanta procura? Não precisa responder, foi só retórica, porra! Já sei, tu deves estar por aí pensando agora "que idiota, sempre me amou, mas agora fala assim pra ver se sofre mesmo, pra vê se me deixa ir de uma maneira dolorosa". Bom, ninguém pode te impedir de se enganar, eu só estou falando o que estou falando. Amor nunca houve, por mais que usássemos a palavra, etc, etc. Era balela. Não era? Pelo que sei, amor não acaba assim. Puft, findou-se!!! Não, nunca assim. Ou se pode acabar assim, também não me serve de nada!
Existe uma certa beleza em escrever para nenhum leitor, uma certa liberdade absoluta e irrevogável. Daqui, vou para onde quiser
"Tudo é caminho, deixa o bicho, dá tudo no mesmo lugar. Não ando do lado da lei e a lei não foi idéia minha, Mas mesmo que o mundo não gire na velocidade que eu queira, Alguns edifícios por dia desabam dentro da avenida, e salva-se a filosofia"
Minha gata não insista, Disneylândias não vão nos levar pro céu.
Aqui estou, em lugar nenhum, vejo diante de mim a imagem da mulher amada. Nada cura o amor senão o amor retribuído, muita gente já disse, e por isso deve estar certo. Ela se move, lentamente, nas minhas lembranças. Não sei ao certo se isso acontece ou não. É tão complicado, embora não passe do dilema mais simples e comum de toda a humanidade. O amor, por sí só, é o que fode e ilumina a vida de todo mundo. Quando não é o amor, é o ódio, mas no final das contas dá no mesmo.
"For those of you who tried but didn't make it"
Onde será que está? agora? será que faz qualquer coisa, será que pensa em mim? ou será que simplesmente dorme e sonha com qualquer novo e revigorante amor? Não me interessa, na minha memória ela é perfeita, desde que eu esqueça dos incontáveis defeitos, é claro. Respiro fundo, sentindo o cheiro do meu próprio braço. E o odor que sinto não é em nada diferente do cheiro dela. Seria isso saudades?
"Change is Hard, I should Know"
E enquanto ouço "and I couldn't help but fall in love again" penso "será que vai ser assim?". Enquanto me pergunto já penso nas diferentes respostas que posso me dar, e entendo que é tudo muito complicado. O primeiro conflito interior da humanidade, ou não.. Afinal de contas, onde diabos eu me meti? isso tudo é só uma conseqüência de ter bebido demais? ou será que a bebida em excesso nos mostra a porra da verdade?
(...)
Volto do banheiro, acabei de mijar um quarto da garrafa de vinho e o som continua "oh baby, I was made for you". Acho que todo esse disco tá meio que equivocado, ou eu estou com espírito de porco. O que dá no mesmo. "Oh, you really got a hold on me", puta que me pariu, o álbum inteiro é totalmente romântico. Mas eu não troco de música, afinal de contas, é tão bonito. Enquanto eu tinha um amor, eu pensava, às vezes, que "deve ser tão bom acabar ou levar um pé na bunda e ficar ouvindo toda essa música de dor de cotovelo que eu tenho acumulada sem sentindo durante todos esses anos". E depois que acabou, fico ouvindo o Cazuza cantar
Obrigado Por ter se mandado Ter me condenado a tanta liberdade Pelas tardes nunca foi tão tarde Teus abraços, tuas ameaças
Obrigado Por eu ter te amado Com a fidelidade de um bicho amestrado Pelas vezes que eu chorei sem vontade Pra te impressionar, causar piedade
Pelos dias de cão, muito obrigado Pela frase feita Por esculhambar meu coração Antiquado e careta Me trair, me dar inspiração Preu ganhar dinheiro
Obrigado Por ter se mandado Ter me acordado pra realidade Das pessoas que eu já nem lembrava Pareciam todas ter a tua cara
Obrigado Por não ter voltado Pra buscar as coisas que se acabaram E também por não ter dito obrigado Ter levado a ingratidão bem guardada
Pelos dias de cão, muito obrigado Pela frase feita Por esculhambar meu coração Antiquado e careta Me trair, me dar inspiração Preu ganhar dinheiro
E até sorrio, mas sei que nada disso nunca vai me dar dinheiro. Foda-se, é engraçado, quase poético, quem diria.
'In headaches and in worry Vaguely life leaks away, And Time will have his fancy To-morrow or to-day. - As I Walked Out One Evening, WH Auden
A pior forma de tortura da qual se tem notícia não é a donzela de ferro ou o pau-de-arara nem mesmo os escapamentos dos jipes do exército A pior ferramenta de tortura é uma coisinha que convencionamos achar totalmente inofensiva quiçá indispensável à vida moderna
Tortura milhões de homens e mulheres todos os dias, embora alguns afortunados tenham descanso nos fins de semana e feriados Essa máquina objetiva e abjeta precisa e onipresente Arranca-nos todas as manhãs brutalmente do mundo tranqüilo e onírico e nos chuta, sem compaixão, para a dura e indeletável realidade Rotina, trabalho e amor
"And the world is made of energy and the world is synchronicity and the world is made of energy and there's a light inside of you and there's a light inside of me.
It’s gonna be all right It’s gonna be all right uh huh yeah. We’re gonna see the sunlight We’re gonna see the sunlight uh huh yeah." - The Apples in Stereo
Daqui há três horas, estará seu corpo nu estendido sobre uma mesa metálica, com furinhos impessoais que drenarão seus fluidos sem preconceito algum. Logo que o assistente começar a abrir a caixa torácica com um alicate comum, o lugar se encherá de um doce aroma inexplicável de Alfazema, o qual demorará meses para desaparecer completamente. Sem demonstrar perturbação, os dois homens ali seguirão observando os danos aos órgãos internos. Pulmões escurecidos por fumaça inalada durante vários anos, pulmão direito com diversas lacerações, costelas direitas com múltiplas fraturas, coração e saco pericárdico intactos, grandes vasos idem. Será recolhida uma amostra de sangue para análise do uso de drogas. Depois dar-se-á o exame do abdômen, cérebro, pescoço. Na folha sobre a prancheta, o médico legista escreverá nas observações, após ter preenchido a declaração de óbito, "hábito tabágico".
Nesse momento, ela não lembra exatamente quando entrou nessa onda neo-hippie new age atrasada, totalmente livre de tóxicos. A influência dos pais, ex-hippongas, deve ter ajudado; os livros do Caio F. também. Esses pais que nunca ligaram muito, na verdade, achavam até bonitinha a repetição cíclica dos hábitos familiares. A única coisa que incomodava eram os incensos SEMPRE acesos, no quarto, na cozinha, no banheiro, no carro, na faculdade, em tudo que era lugar. Em verdade, ninguém conseguia aguentar aquilo por muito tempo. No início, os amigos achavam muito engraçado e só tiravam sarro da sua cara, com o tempo, eles e ela foram se afastando mutuamente, como se fossem se desconhecendo. Na faculdade de comunicação social, os colegas pediram com muito jeito pra ela parar com aquela merda de incenso-em-todo-lugar, porque se era proibido fumar ali, devia também ser proibido ficar queimando aquelas coisas que literalmente tiravam lágrimas dos olhos dos colegas mais alérgicos. Preferiu abandonar a faculdade inútil aos incensos. Após ler tantos livros levemente conflitantes - quando se pensa um pouco, não tem mais certeza se já entramos afinal na era de Aquário, não tem mais certeza de porra nenhuma. Também não faz diferença agora, todo esse aparato místico não ajudou em nada, pelo contrário, afundou sua vida numa depressão solitária sem fim.
Em trinta minutos, estacionará o carro novo que o pai (ex-hippie, neo-empreendedor explorador dos trabalhadores) deu na tentativa de fazê-la sair de casa. Sairá do carro, subirá na mureta do viaduto da Borges -é um belo dia de sol em Porto Alegre- e despencará até a rua. Com um incenso aceso entre os dedos.
In my craft or sullen art Exercised in the still night When only the moon rages And the lovers lie abed With all their griefs in their arms, I labour by singing light Not for ambition or bread Or the strut and trade of charms On the ivory stages But for the common wages Of their most secret heart. Not for the proud man apart From the raging moon I write On these spindrift pages Nor for the towering dead With their nightingales and psalms But for the lovers, their arms Round the griefs of the ages, Who pay no praise or wages Nor heed my craft or art.
Tenho um cachorro chamado Amor e outro Indiferença. Toda manhã, de sol ou não, Indiferença me acorda com lambidas na cara. Amor come sua porção de ração e vai vadiar pela rua. À noite, chamo-o com cara de filhote sem dono, Quero afagar o Amor, passar por suas orelhas minha mão Mas quem vem correndo é Indiferença, babando de alegria.
Teria eu errado a mão ao batizá-los? Ou seria tudo isso somente mais uma ironia da natureza?
Não sei. Tudo que sei é que tento dormir com Indiferença sobre meus pés, sob os uivos de Amor para a lua.
Sou um trabalhador de escritório que escreve contos sobre trabalhadores de escritório que largam o trabalho enfadonho e se mandam nas mais loucas aventuras. Exponho em meus textos tudo aquilo que, de alguma maneira, tenho vontade de fazer, mas me falta coragem. Eu nunca quis trabalhar em um escritório, e eu não trabalho em um, eu não trabalho em lugar nenhum. A parte isso, sonho o pesadelo de ser um trabalhador de escritório, em uma atmosfera kafkiana, inescapável e eternamente sufocante. Quem sabe assim, reduzindo minha existência a um personagem inseto de valor duvidoso, e revoltando ele contra o sistema anti-revolucionário (na verdade aRevolucionário), crio um novo brilho em minha própria existência, nem tão ruim, nem tão excitante.
Larguei o emprego de trabalhador de escritório de fritar hambúrgueres num fast-food pirata comprei um carro velho e fui desbravar os vilarejos mais distantes da américa latina. Aluguei uma casinha na praia e botei meu laptop de frente pro Pacífico. Com serenidade no coração, pude enfim escrever sossegado sobre o esmagamento do individuo pela civilização contemporânea.
Como escrever esses contos de merda não dá mais dinheiro (a menos que você dê, ou coma, a bunda de algum figurão da mídia), tive que virar ajudante de pescador, pra poder continuar alugando a casinha e pagando a energia elétrica pra recarregar esse computador. Mas como nessa época não se pesca quase nada por esses mares, a gente tem que trabalhar dobrado pra ganhar metade do salário. Apesar do ar cristalino que respiro por aqui, nunca deixo de sonhar com um manjar com um hamburger oleoso.
E como nunca fui bom em escrever essas merdas bucólicas, estou pensando seriamente em voltar pra civilização, me lembrar como me sinto enquanto estou sendo esmagado e escrever sempre sobre a mesma coisa.
A filha do pescador tem 19 anos, uma bunda impecável e um sorriso que nunca para de me chamar. Não da pra escrever, nem pra admirar o sol ou o mar, enquanto ela põe a roupa no varal com o traseiro empinado. Apesar da grande vontade (aparentemente mútua), tenho um vago medo de ser linchado ou castrado se comer essa delícia. No fim, não sou nada além de covarde.
Quero escrever um livro sujo. Sobre pessoas feias que chafurdam nos restos da sociedade procurando um motivo barato para continuar existindo. Histórias escrotas me interessam, quero chocar pelo escatológico. Não precisa de inteligência para falar merda. Mas eu quero merda consistente. Quero que tu sinta, abra o livro entre as pernas e sinta a bosta escorrendo. Quero que tu sorria e enxergue teus próprios motivos ralos pra continuar respirando. Roubando o Oxigênio dos gênios, se é que ainda existe algum por aqui. Todos devem estar trabalhando em universidades norte-americanas, procurando uma maneira de não respirar o mesmo ar que a gente, pra não se contaminar com essa porra toda que escorre dos nossos poros. Teu mijo é a parte mais limpa de ti. Deito na cama e não consigo dormir porque todas as existências vazias e deprimentes me atormentam. Não se engane, assim como você eu também sou podre. Escrevo para ter meu próprio motivo barato pra continuar existindo. Quebrar a rotina massacrante dessa vidinha besta que eu e tu levamos. Ninguém se salva. Mas não quero iludir ninguém, não trago grandes verdades nem pequenas epifanias. Trago e vos entrego essa bosta fresca e nada mais.
Now at midnight all the agents And the superhuman crew Come out and round up everyone That knows more than they do Then they bring them to the factory Where the heart-attack machine Is strapped across their shoulders And then the kerosene Is brought down from the castles By insurance men who go Check to see that nobody is escaping To Desolation Row
Um restaurante no fim do mundo. Um dono, ou talvez um casal de donos, totalmente entediado com a falta de novidade. O pouco dinheiro que entra quando alguem se perde com fome pelo fim do mundo é o suficiente pra viver uma vida contida, comendo pouco e lambendo os dedos enquanto prepara uma refeição pela qual receberá alguns trocados. Nessa noite chove, vinda de algum lugar uma mulher passa pela porta, tudo está vazio. Minutos após os insistentes toques na campainha sobre o balcão, um homem de meia idade, com um sobre-tudo sobre os pijamas, chega e lhe dirige a palavra. Apenas um pouco de comida, ela quer um pouco de peixe e arroz para preparar no seu próprio fogão, assim é mais barato, ela explica, também não tem nenhuma alta quantia. Enquanto isso, um homem, acompanhante dessa mulher, deixa a casinha na beira do lago e vai buscá-la.
Então, ambos - homem e mulher - estando sentados em uma mesa do restaurante, enquanto a esposa do dono prepara algum prato interessante na cozinha. Eles não se falam. Veja bem, eles nunca se falaram muito, nunca chegaram a debater qualquer coisa séria ou expor seus sentimentos um ao outro. Mas, neste momento, eles não falam absolutamente nada, apenas degladiam-se com olhares. Nenhum está realmente zangado em relação ao outro, não existe ódio ou raiva entre os dois. Simplesmente existe nada, um grande vazio, abismo ali no meio. Ela apaga o cigarro no cinzeiro já cheio, ato contínuo, enfia suas unhas e dedos nos tocos de cigarros e cinzas, sua expressão continua inalterada. Nada se lê em suas faces, a não ser um entediamento absoluto.
Ele tira do bolso o livro "seu cliente pode pagar mais", um pouco de realidade nessas férias desérticas, ele deve estar pensando. Logo encontra mentalmente ensinamentos prévios que provavelmente estão reeditados nesse almanaque do positivismo, sorri e guarda novamente o livrinho sem nem a menos abrí-lo. Ela assiste a cena com uma risada irônica, que em poucos segundos se converte em desprezo. Ela se levanta e vai ao banheiro. A comida chega. Ele não espera ela voltar para iniciar a refeição.
Eles não voltam para a casinha alugada, vagam pela estrada escura em direção ao nada. Dão voltas e voltas sem sentido, sem distinguir o céu do horizonte, não falam nem se tocam, estão juntos apenas como conseqûencia do hábito de estarem juntos. Não se conhecem mais, nunca se conheceram. Andam assim até o dia amanhecer, e a noite chegar novamente, e até não mais se verem, acabarem sozinhos, como sempre estiveram.